Chegamos ao deserto africano. Para alcançar as tendas dos abrigos nômades usamos uma comitiva de camelos, animais grandes mas absolutamente dóceis, silenciosos e companheiros. Podemos acariciá-los e eles fecham os olhinhos gratificados com nosso contato.
A montaria é relativamente curta levando em consideração que cruzamos da capital ao deserto de mini van em aproximadamente 8 horas de viagem.
Andar de camelo é completamente desconfortável. Pernas mais abertas do que quando se anda de cavalos, dificuldade de encontrar uma posição adequada de acomodação dos ísquios. Fui revezando de um lado para o outro dos quadris na tentativa de encontrar uma travessia menos dolorosa.
No acampamento experimentamos a vida berbere, povos nativos que habitavam a região no início dos tempos. Tapetes para o compartilhar o chá de menta, tendas para descansar, tajine de legumes e tangerinas doces para o jantar, música em torno da fogueira e os preparativos finais para uma boa noite de sono sob um céu mergulhado em estrelas.
A lua minguante daqui aparece de uma outra perspectiva. Sua face iluminada está em uma posição diversa da habitualmente observada na América do Sul. As estrelas são muitas, muitas mesmo. Um pequeno cometa cruza o céu e nos dá a chance de fazer um pedido, um desejo, aproveitando a tradição folclórica conhecida no Brasil.
O vento entra por debaixo das frestas da tenda. Usamos todas as roupas que trouxemos na mochila. Mas a ponta do nariz descoberta fareja o frio implacável que vem de fora. Só o cansaço nos adormece.
Sonho intenso, nítido e movimentado. Conteúdo onírico a ser trabalhado com tempo e cuidado em mais de uma sessão de terapia. Conexão com possíveis acontecimentos remotos desta terra inóspita, árida e distante que passamos a noite.
Ouço ventos e outros barulhos irreconhecíveis. Lembro que apenas o pano suspenso da tenda me separa das estrelas exibidas na escuridão. Sou tomada pelo sono que me transporta até os primeiros raios de sol do dia seguinte.
A vida nômade, de hábitos espartanos, é muito diferente do conforto nas cidades. Nosso guia, representante atual desta tribo, literalmente, nunca foi à escola formal, mas fala francês, inglês, espanhol e alemão, além do árabe e dialetos locais. Sem dúvida, estar na vida de forma tribal é por demais diferente da versão urbana e contemporânea, que conhecemos tão bem. E sem julgamento de valor em relação a cada uma delas, o importante é destacar que ambas fazem parte da atualidade e proporcionam contentamentos e restrições, respectivamente.
Acordamos às sete, iluminados por um sol cerimonioso que se apresentava no horizonte, tomamos café e montamos em nossos camelos de volta à Marrakech.
Nada de extra-ordinário. Apenas mais um dia. Desta vez no deserto. Entretanto o que transforma a experiência ordinária é todo o foco, a apreciação e o apreço que dedicamos em vivê-la de forma despretensiosa e gratificante. É um viver consciente, sem desvirtuar a atenção, sem pré-ocupação, sem ansiedade, um presente ampliado, experimentado intensamente. É simplesmente Ser. Em plenitude.
E assim, satisfeita, deixo o deserto africano e sigo para mais um destino (destination): agora no trem em direção ao aeroporto de Casablanca para embarcar para Lisboa. Sempre em direção ao meu próprio destino (destiny). Insha’Allah.
Por Valéria de Souza Lima. Para uso deste conteúdo, favor incluir a autora e a fonte desta publicação www.emocoesemtransito.com.br.
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